Simbologia e diálogo no trabalho de Valéria Scornaienchi

Corvos, uma casa, o ateliê-maquete, colagens sonoras e outras peças por vir configuram o conjunto de trabalhos do projeto artístico “Pelo Avesso” que Valéria Scornaienchi nos apresenta nesta mostra selecionada pelo Fundo de Investimentos à Cultura (FICC) da Secretaria Municipal de Cultura de Campinas. Neste caso em particular, a breve descrição que nos introduz a exposição torna-se fortuita apenas na medida em que a percebemos como incompleta, como sintoma de projeto em curso e em construção, à busca de interação.

O real, o simbólico e o imaginário constituem aqui a tríade que bem pode nos orientar para a leitura do projeto, admitindo-se para tanto, o risco das articulações entre arte e inconsciente, risco este tal qual o empenhado pela artista em seu processo de criação desses trabalhos. A espessura de cada um desses campos e personagens envolvidos e ou estimados para a proposta, por si, nos sinaliza que a tarefa vale a pena.

Projetados em (sobre)voo, os elementos trabalhados por Valéria na origem do projeto: os corvos, a casa, bem como o próprio ateliê-maquete construído com a ambivalência possível entre lugar-para-diálogo-com-outros-públicos e objeto-obra desempenham múltiplos papéis plásticos e poéticos adensados por sua modulação no espaço, seja ele dentro da própria folha de papel, seja no lugar expositivo em que são instalados, deitados que estão, sutilmente, sob os eixos da plataforma expositiva onde estabelecem distintas formas de gravitação.

Nesta direção, o tratamento aqui aplicado para o elemento do peso com o qual Valéria constrói os trabalhos (à priori) ou os multiplica_ constituindo o que poderia ser entendido como espécie de objetos visitantes_ nos chama a atenção por oscilarem entre o real e o imaginário convidando-nos a recobrar nossas memórias sobre figuras imagéticas que de maneira geral habitam nossos referenciais culturais. Não por acaso, este projeto da artista expande a presença de figuras culturais conhecidas que são envolvidas em narrativas criadas por ela, em seus projetos artísticos, de modo subjetivado. Antes, a Alice; a série de bichos, agora os corvos. 

Neste projeto atual, o corvo é protagonista animado de uma narrativa nada linear que evidencia sua presença de diversas formas, para além da visualidade. É visitante oportunista que parece sustentar o peso da casa, ao mesmo tempo em que a revela e concretiza na paisagem. Ora é real, ora é lembrança. A artista o apresenta de modo múltiplo: esquemático como uma sombra; extremamente delineado como numa imagem de registro fotográfico. São pássaros que assumem tantas formas quanto o próprio looping empregado em parte das peças expostas (vídeo e instalação). Assim, ora eles se condensam em imagem ou som, ora são simbologia. 

Por sua vez, a estrutura da casa e o ateliê-maquete ocupam o protagonismo das coisas inanimadas que igualmente constroem a narrativa imaginada pela artista. Como abrigos, indicam temporalidades distintas; estão, no tempo presente, a servir como elementos reais, mas o fazem de modos também diferentes: a casa consolida o cruzamento entre o simbólico e o imaginário de visitas a outras terras e antepassados e não pressupõe o seu uso. O ateliê-maquete articula e assim convida à participação que pode garantir a manutenção do processo do trabalho, em construção, mesmo durante o período expositivo, reiterando assim, sua transitividade. 

Em processo é que se instaura o diálogo do projeto “às avessas” pela escuta do outro como sinal claro de submissão do real pelo imaginário, tal qual nos indicaria Freud em seus estudos sobre a necessidade de distanciamento da psicanálise em relação às teorias associacionistas. Muito distante da mimese, os elementos representados pelo artístico, como executa Valéria, perscrutam o vigor da lembrança, tanto quanto evocam o capital cultural simbólico partilhado por muitos. 

O dado gravitacional desses elementos concretos ou imaginários burilados por ela é elaborado de modo sofisticado e fragmentado, tal qual nos demanda a estória delongada à qual nos entregamos por bom tempo a fim de participar, de algum modo, de seu desfecho. 

Como numa estória a ser inventada, a atividade participativa desse espaço de trabalho criado dentro da exposição convida, no tempo real, à sua continuidade estendida no espaço, nos arranjos possíveis para as peças que dela fazem parte. Ao propor a abertura do ateliê reconstruído sob a forma de uma maquete que recebe a visita ativa dos outros, a artista indica pelo menos duas premissas sobre si: a primeira demonstra seu ritmo de trabalho, seu empenho e entrega; já a segunda, nos aponta para seu desejo de participação, disponibilidade de escuta e compartilhamento para outros núcleos, sistemas e circuitos como os que a contemporaneidade artística pode nos ofertar. 

Sylvia Furegatti
Outubro.2018

 

Symbology and dialogue in the work of Valéria Scornaienchi

Crows, house, studio/model, sound collages and other pieces to come configure the set of work of art project Inside Out presented in this exhibition selected by the FICC (Foundation of cultural investment of Campinas) of the City Department of Culture of Campinas. In this particular case a brief description that introduces us to the exposition becomes fortuitous only as far as we perceive it as incomplete, as symptom of a project under way and under construction, seeking for interaction.

The real, the symbolic and the imaginary are the triad that can guide us to the reading of the project, thus admitting the risks of articulation between art and un‐ consciousness, a risk that is taken by the artist in the process of creating such works. The thickness of each of the fields and characters involved and or estimated for the proposition, signals us that the task is worth it.
Projected in (over) flight, the elements worked by Va‐ léria in the origin of the project: the crows, the house, as well as the studio/model built with the possible ambivalence between place-for-dialogue-with-different publics and object-work play multiple plastic and poetic roles densified by their modulation in space, either on the sheet of paper or in the exhibition space where they are installed, which are subtly under the axes of the exhibition platform where they establish different forms of gravitation.

In this direction, the treatment applied here to the element of weight with which Valeria constructs the works (a priori) or multiplies them constituting_ what could be understood as kind of guest objects_ calls our attention by oscillating between the real and the imaginary inviting us to recover our memories of imagery that generally inhabit our cultural references. No coincidence, this project expands the presence of known cultural figures which are involved in narratives created by the artist in her projects. First Alice; then the series of animals, now the crows.

In this current project, the crow is an animate protagonist of a nonlinear narrative that evidences its presence in diverse forms, beyond visuality. It is an opportunistic visitor who seems to support the weight of the house, while revealing and materializing it in the landscape. Sometimes it is real, others it is memory. The artist presents it in a multiple way: schematic as a shadow; extremely delineated as in a photographic image record. They are birds that take as many forms as the looping employed in part of the exposed pieces (video and installation).
Hence they either condense into image or sound, or they are symbology.

The structure of the house and the studio/model occupy the leading role of inanimate things that also build the narrative imagined by the artist. As shelters, they indicate different temporalities; they are in the present time serving as real elements, but in so many different ways: the house consolidates the intersection between the symbolic and the imaginary of visitations to other lands and ancestors and does not presuppose its use. The studio/model articulates inviting participation that can guarantee the maintenance of the work process, under construction, even during the exhibition period, thus reiterating its transitivity.

Along the process the dialogue of the "inside out" project is established through to the other’s listening as a clear sign of submission of the real by the imaginary, as Freud would indicate in his studies about the need for distance of psychoanalysis from associationist theories. Far from mimesis, the elements represented through art, as Valeria performs, examine the strength of remembrance as well as they evoke the symbolic cultural capital shared by many.

The concrete or imaginary gravitational aspect of these elements, worked by the artist, is elaborated in a fragmented and sophisticated manner as in a never ending story into which we plunge for endless hours in order to somehow participate in its outcome.

As in a story to be invented, the participative activity in the workshop created by her inside the exhibition, invites in real time for its extended continuity in the space.

In proposing the opening of the reconstructed studio in the form of a model that receives the active visit of the others, the artist indicates at least two premises about herself: the first demonstrates her rhythm of work, her commitment and allegiance; the second one, points out her desire of participating, listening and sharing availability to other nuclei, systems and circuits as the such offered by contemporary art.

Sylvia Furegatti October/2018

 

...... é o processo
Valéria Menezes e/ou Valéria Scornaienchi.                                        

La vasta noche no es ahora otra cosa que una fragancia. Jorge Luis Borges


Valeria Menezes traz de seus sonhos uma nova forma de representar, inventa sua própria língua/linguagem/discurso/processo. Uma língua de algum modo estrangeira como colocou Proust.  Nesses sonhos, onde o silêncio também é cúmplice, mesmo que no inconsciente de todos há um desejo imenso por conflito. E esses conflitos na artista expandem-se na energia em suas obras. Essa energia de seus sonhos aparece em concomitante relação às energias intermediárias do antes e o depois, um processo. Como um caleidoscópio que desenha e redesenha as composições configuradas em conexões reflexivas, materializadas em cartografias constantemente reinventadas e inacabadas. A pluralidade de suportes, modalidades, sintaxe interna dos processos executados e os dispositivos resultantes esclarecem essas conexões adirecionais e atemporais, evidenciada também e como parte intrínseca dos recursos estéticos de Menezes nos títulos das obras e séries: CAMINHO, ENTRE ABERTO, NEM SEMPRE SILÊNCIO, NUNCA  MAIS,... Os pecúlios investigativos da artista encanastram sequências abertas e locupletas na pesquisa e consequentemente nos influxos estéticos “que se entrelaçam, na aura, a onipotência do olhar e a de uma memória que se percorre como quem se percorre, como quem se perde numa “floresta de símbolos”. Como negar, com efeito, que é todo o tesouro do simbólico – sua arborescência estrutural, sua historicidade complexa sempre relembrada, sempre transformada – que nos olha em cada forma visível investida desse poder de levantar os olhos?

Ao compor suas composições musicais, a artista, manipula as referências textuais para elaborar uma escrita própria; semântica e gramaticalmente particulares, com aquela intermitência entre frames [de Didi-Huberman]. Musicas que calcorreiam os caminhos complexos dos processos de criação visual que eficientemente a artista delineia em trajetos progressivos arquitetados aos diversos e possíveis agentes evocados e instilados.

Assim Menezes na formulação e realização de seus manifestos estéticos estabelece-se diligentemente como “[...]toda obra é uma viagem, um trajeto, mas que só percorre tal ou qual caminho exterior em virtude dos caminhos e trajetórias interiores que a compõem, que constituem sua paisagem ou seu concerto”.  Revelam-se assim, processos que germinam também da literatura e da filosofia, acarando o caos e elaborando conceitos conscientes, sem renunciar ao infinito, sem referencias peremptórias, sobejando funções ou mais ainda sensações, sem serem nenhuma delas protagonistas, e si em plenas relações processuais.

Encontros com Alice, 2015. Aquarela, gouache, recortes de revista e de livros antigos, renda de papel, impressão adesiva e papel. 76x56cm, Coleção da artista

 

São as fragrâncias resultantes dos processos da artista compostas pelos rastros escuros do voo dos corvos, pelas sombras das luzes, pelos demônios dos sonhos, dos mistérios e sortes, a infinidade imensurável das cores e proporções elucidadas (das palavras ditas ou evocadas) que exalam numa escrita multimodo as grafias de NUNCA MAIS3 e de Perímetro Urbano. A primeira como aparelhagem visual para a exposição Nunca Mais, de 20/11/2016 a 19/12/2016, na Galeria de Arte da UNICAMP, e Perímetro Urbano, resultado de uma amalgama de procedimentos e recursos para explorar a imagem como via de comunicação, da cidade expandida à expansão revertida [e como ingrediente dela] para a própria cidade, doada à coleção do Museu Universitário de Arte, MUnA, da Universidade Federal de Uberlândia –UFU – pelas comemorações dos 20 anos do museu mineiro.

Andrés I. M. Hernández
Curador.

 

...it is a process.
Valéria Menezes and/or Valéria Scornaienchi

"La vasta noche no es agora otra cosa que una fragrance" The enormous night is now nothing more than a fragrance. Jorge Luiz Borges


Valeria Menezes brings from her dreams a new form of representation, creates her own tongue/language/discourse/process. A language as a foreign language to quote Proust. In these dreams, when silence is also accomplice, even though in everybody's unconscious there is an immense desire for conflicts. And these conflicts, for the artist, expande as energy in her works. This energy in her dreams appears at the same time in associate relation between the energies of before and after, a process. Such as a kaleidoscope that draws and redraws compositions configured in reflexive connections, materialized from reinvented and unfinished cartography. The plurality of supports, modalities, internal syntax of executed process and resulting devices, clarify these non directional and timeless connections, evidenced also and as an intrinsic part of the aesthetic features of Menezes in the titles of the works: PATH, AJAR, NOT ALWAYS SILENCE, NEVER MORE… The artists investigative annuities  weave open sequences and indulge themselves in research and consequently in the aesthetic inflow wich “intertwine the aura omnipotence of the gaze and of a memory that wanders like one who wanders  as if lost in a forest of symbols. How can one actually deny that this is the whole treasure of the symbolic – its structural arboretum, its complex historicity  always remembered, always transformed – that stares at us in each  visible form vested of the power to raise our eyes? 1

While writing her musical compositions, the artist manipulates   textual references to draft her own writing, her own grammar and semantics, with that flicker between frames (Didi-Huberman). Songs that roam the complex roads of visual creative processes that the artist efficiently delineates in progressive pathways architected to the various and possible evoked and instilled agents. So Menezes, in the formulation and realization of her aesthetic manifestos is established diligently “as every work is a journey, a pathway, but it only roams this or that outer paths due to the interior trajectories and pathways that compose it, which constitute its landscape or its concert." Thus are revealed processes germinating not only from literature but also from philosophy, facing chaos and elaborating conscious concepts, not renouncing to infinity, with no peremptory references, abounding with functions or moreover with sensations, none of them being protagonists and themselves in a full procedural relation.

They are fragrances resulting from the artist’s process composed of dark traces of the flights of crows, the shadows of light, the demons of dreams, mysteries and fortune, the immeasurable multitude of colors and elucidated proportions (of the said or mentioned words) that exude a multimode writing, the spelling of NEVERMORE and URBAN PERIMETER. The first as a visual equipment to Unicamp Art Gallery3 and the latter4, resulting of an amalgam of procedures and resources to explore the image as a means of communication, the expanded city to the reverse expansion [and as an ingredient of it] to the own town; donated to the collection of University Art Museum, MUnA – Federal University of Uberlandia – UFU – for the 20 year celebration of the museum.

Andres Hernández