tempo entre, quase tempo

instalação de vestígios e sementes, ateliê serafina, 2022.

Quase tempo. Parece que ao olhar sobre as imagens e textos que eu venho produzindo, me encontro com esse lugar de um quase tempo. Uma suspensão do tempo na medida em que aquilo que eu vejo já não reconheço facilmente. Embora debruçada na experiência de dissecação quase natural desses viventes, uma poeira, uma pluma, algo que eu poderia chamar de uma sujeirinha que descansa na superfície do papel, me parece agora essencial. E assim ao olhar o entorno e observar coisas, objetos, móveis, ruas, carros, cidades, tudo parece tão desnecessário quanto compreender que a essência da vida está nisso, que eu nem ao menos sei o que é. Me desconheço nesse lugar chamado terra. Quando foi que me desconectei dela? Instinto de sobrevivência, mas que sobrevivência? Pautada em que valores? E agora me desconheço nesse lugar desconectado, e me pergunto como foi que cheguei aqui?

As plantas e os humanos se assemelham em vários aspectos, mas há uma coisa que os difere. Coexistência com outros seres. Numa floresta quando alguma planta adoece todas ao seu entorno se reorganizam para ajudá-la. Compreendem que a sua ausência cria um desequilíbrio a todo um sistema. Não há competição há colaboração. Quando eu observo cada fragmento da planta se desfazendo e desaparecendo na mesa do ateliê, é possível compreender o quanto o último fragmento de planta é tão importante quanto olhar para a planta tal qual conhecemos, algumas vezes é dele que saem pequenos seres quase invisíveis em busca de um outro lugar de estar.

Ao olhar os pequenos vasos que moram na janela eu os vejo coexistindo, se entrelaçando, respeitando o espaço um do outro, misturando seus odores, até a sombra que eles formam vira uma só, com diferentes formas de folhas. A diversidade não está só fora de nós, está dentro também. O corpo é diverso. Tem vários tipos de tecidos, muitas substancias diferentes, e quando há qualquer desequilíbrio em qualquer uma dessas substancias ou no funcionamento de qualquer uma das partes do corpo, todas as outras ficam debilitadas, e ao mesmo tempo procuram trabalhar para ajudar a parte que está doente a se recuperar. Somos como as plantas na essência, mas como será compreender isso para fora de nós? Em relação ao outro e ao mundo?

fragmento do trabalho gestos esculturas mínimas.

Um lugar de ausência de corpo talvez seja o lugar não físico de pensar, mas o lugar sensível. Através do qual é possível alongar o tempo, e compreender o espaço que existe entre eu e o outro de forma a perceber que esse é o lugar da imaginação. Há de se deleitar nesse lugar de tempo suspenso e conexão profunda com esses viventes para se perceber a possibilidade de criar novas formas de se relacionar a partir de algo desconhecido e potente. Em seu texto sobre a vida sensível Emanuele Coccia diz que “as formas são capazes de transitar em um estado que não corresponde nem ao ser natural que possuem em sua existência corpórea (física, mundana) nem ao estado espiritual em que se encontram quando são conhecidas ou percebidas por alguém... Isso porque o sensível é uma transformação dos corpos, é aquilo que determina e orienta os espíritos, e assim todo sensível está entre a forma de algo e o lugar de sua existência e da sua consciência. Assim o sensível esta onde não se vive mais e não se pensa mais.”  Encontrar esse texto me fez pensar que os vestígios talvez sejam esse lugar, onde não se pensa mais e não se vive mais, e que ao mesmo tempo tem toda potência da vida. É capaz de ativar a memória e nos surpreender com o aparecimento de pensamentos sensíveis e desconhecidos, que podem nos levar a uma outra forma de ver não a partir da matéria, mas do que está para além da matéria. O que está no espaço entre eu e o outro, eu e os viventes.

Apresento nessa série, imagens criadas através dessa experiencia com um mundo sensível que chegou a partir das plantas, do seu tempo de vida fora do seu habitat natural e das transformações as quais pude acompanhar observando, manipulando e sentindo o que estava para além da própria forma que elas apresentavam. A conexão com esses seres viventes por um tempo prolongado me permitiu extrair deles a sua essência e por consequência a minha própria essência. Os vestígios de mim como forma de pensar como habitar coexistindo.

mesa de trabalho, ateliê em casa.

processos, mesa do ateliê em casa.

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nem tudo me parece familiar