Seres viventes
como latência no processo criativo e na vida
A arte e a vida não se separam para mim, porque é na vida que me inspiro para a arte, e na arte que me inspiro para viver. É uma via de duas mãos que se cruzam o tempo todo. Nos deslocamentos do cotidiano eu me deparo com paisagens, com palavras, com pessoas que me ajudam a pensar e me afetam de forma que tenho vontade de registrar coisas, desenhar os afetos, me conectar com mais profundidade e me ver de outras formas possíveis. Compreendo que a diversidade de lugares por onde posso ir, também é a diversidade de lugares por onde minhas criações artísticas podem ir. A natureza (ainda não encontrei um nome melhor para essa grandiosidade) me ensina o tempo todo sobre o tempo, sobre a vida, sobre a morte, sobre a delicadeza, sobre a força, sobre a agressividade e sobre outras formas de me relacionar. Nas colagens que tenho feito agora, me interessa pensar nessas camadas de coisas que se sobrepõe e que ao mesmo tempo tem uma profundidade, me traz uma possibilidade de compreender a grandiosidade da vida, e de todas as relações que podem estar contidas nela. São fragmentos de desenhos meus, de ilustradores de livros sobre plantas e outros seres, são fotografias de paisagens, são texturas de plantas, são imagens feitas com muito zoom até serem uma abstração da existência, um vestígio, que é algo que muito me interessa. Os desenhos são uma expansão do meu olhar melhorado pelo mundo ao meu redor. São traços inventados misturados com os existentes que criam mundos de ideias do que é a natureza ampla e aberta para encontros híbridos.
Uso procedimentos de aplicativos de celular para criar as imagens. Primeiro tirando o fundo de fotografias e desenhos para então os sobrepor em outro aplicativo de celular. As imagens não são grandes, mas por enquanto isso não me importa.
Imagino histórias, narrativas que me ajudam a criar as imagens, como a vida amorosa dos cogumelos, a vida múltipla das formigas, o encontro entre os liquens, a vida secreta das plantas ou a simples existência cósmica. As existências que transpassam o que conhecemos ser a existência. Encontros mágicos dos seres viventes na terra, no cosmo, nos lugares fluidos da existência.
Emanuele Coccia nos conta que chamamos de metamorfose uma dupla evidencia que ser vivo é em si mesmo uma pluralidade de formas simultaneamente presentes e sucessivas, embora cada uma dessas formas não exista de forma autônoma, separada, pois cada qual se define em continuidade imediata com uma infinidade de outras antes e depois dela mesma. Isso me faz pensar como de certa maneira a coexistência e a interconectividade de todos os seres é um fato, é algo que não pode nem deve ser desconsiderado porque a cada momento que nos separamos dos outros seres imaginamos uma vida singular, um corpo não coletivo e não relacionado a outros, nos faz perder a dimensão de como nossa ação e movimentos no mundo interfere na vida na terra. Não só de seres que já estão aqui como de seres por vir.
Já estou de volta ao meu ateliê faz algumas semanas, embora faça muito calor, ainda reverberando a neve, o branco, as plantas que resilientes rompem as camadas de neve e surgem na paisagem branca. Seus galhos são de muitas cores, assim como são os jardins daqui do Brasil. No Canadá também floresce na primavera e no verão, e talvez uma das maiores diferenças que eu vejo entre o Brasil e o Canadá seja justamente a existência clara das estações do ano. Aprendi a perceber os brancos e mais que isso aprendi a ver a neve de uma forma muito especial. Cada dia que neva é de um jeito, o floco se forma de um jeito, a neve cai de um jeito, é mais leve, mais pesada, mais densa, mais suave, coisas que eu sabia sobre a chuva, mas nunca tinha tido a oportunidade de perceber com a neve. Ver a neve me fez ver a chuva diferente quando voltei ao Brasil. Contaminada pelo jeito de existir da neve a chuva se tornou mais fluida e pesada mesmo quando é leve. O cheiro de chuva vem primeiro que a própria chuva, cheiro de terra molhada, que só fui descobrir muitos anos depois. Passei minha infância dizendo que estava com cheiro de chuva. Morar na cidade onde pouco se vê a terra faz a gente esquecer da sua existência. O cheiro de chuva me leva de volta a infância onde eu via a chuva com o corpo, sempre o corpo molhado, escorrendo e sentindo a vida acordando cada parte do corpo. Água que sempre foi meu refúgio, água do banho, da piscina, de lavar a louça, de cachoeira, de rio, do mar, da poça e das enxurradas. Águas que movem meu corpo dentro e fora. Meus rios internos choram nas lágrimas de alegria, tristeza e emoção, meu corpo sua nos gestos intensos, úmido. Úmido em todos os orifícios, de suor, de lágrima, de gozo. Úmido de vida latente. De fluxo aquoso que corre nas veias, das sobrevivências da vida humana, complexa e desastrada na sua forma de ser. Prefiro ser rio, cachoeira, corredeira selvagem que desce nas encostas. Corpo fluido que traz a montanha, a terra, os peixes, as algas, as pedras e os seres invisíveis em seu fluxo vivo. Sempre vivo, acordado de existência e consciência divina. Corpo fluido que carrega para dentro do meu corpo a montanha, a terra, os peixes, as algas, as pedras e os seres invisíveis. Assim eu construo a relação com a vida livre e selvagem da natureza. Assim eu adentro a cidade em fluxos, ora sendo rio ora sendo pedra, ora sendo montanha ora sendo mar. Adormecida pela cidade fiquei por muitos anos, tempo demais para dizer a verdade, sempre estive nas paisagens exuberantes, no mar, na cachoeira, na montanha, mas nunca estive de corpo fluido. Sentindo a existência de cada um desses seres e podendo assim ser eles, nem que por um pouco espaço te tempo, até poder enfim estar em comunhão, com a consciência do que é ser humano na terra, e do que é ser paisagem. Também sou o céu, desde que me aproximei do céu durante dois anos, todos os dias por pelo menos 30 minutos, percebi sua imensidão. Não dá para fotografar o céu sem ser o céu. Os desenhos, a cor, o gesto, a densidade, a fluidez, a alegria, a revelação diária de uma existência plena e cheia de gestos, contornos e energia, mesmo se tudo que você consegue ver é um céu azul, imenso e aparentemente sem nuances, basta se adentrar para perceber a profundidade, o peso, a leveza, e o gesto sutil no que parece liso, homogêneo e talvez sem graça para outros.
Carrego para o ateliê, através das janelas o céu intenso e cheio de existências, também os fragmentos naturais, não para colecionar, mas para ser eles por algum tempo. Para me conectar, sentir, cheirar, perceber sua relação com o corpo, com a mesa, com os outros fragmentos. A ideia de coleção me parece interessante a uma primeira vista, mas logo me deparo com uma ideia de seres não vivos, inanimados, guardados, e entregues a um tempo longo de existência em um mesmo lugar, quase sem movimentos e outras relações afetivas. O trabalho é vivo e esses seres se deslocam o tempo todo dentro do espaço do ateliê mudam de lugar, de forma, de cor, continuam vivos, em plena metamorfose, e mesmo quando são seres ínfimos que restam nas mesas são a existência plena. Nessa relação me interessa pensar em como eles são a floresta. Como se conectam e se transformam na relação com outros, como mudam e sendo outros sugerem outras relações de estado de conexão. Acompanhar os seres viventes, sempre me faz lembrar na vida latente em cada um deles, dos seres mínimos que sempre aparecem se deslocando entre eles, ou nas mesas. Nos desenhos e colagens eu procuro agigantar sua existência ou colocar em relação. Eu me interesso por histórias e textos que surgem quando estou com eles. Memórias de infância, de lugares, de cheiros, de tempos estendidos de uma vida com sentido. Há momentos em que me sinto perdida no trabalho, acho que ele é tão fluxo, que me deparo com uma situação de não conseguir ordenar, organizar e fazer a relação. Mas ao mesmo tempo é tudo tão conectado que me pergunto qual é a necessidade real de criar essas conexões de entendimento? Talvez pensar em todo o trabalho como uma pergunta aberta, de compreensão dos seres vivente a partir deles mesmos e não da leitura e compreensão que eu tenho deles seja a forma mais acertada de apresentar meu trabalho.