não monoculturas como formas de pensar a vida e a arte

imagem feita no jardim da ufpa, 2023.

De alguns anos para cá venho me percebendo em um trabalho artístico entremeado a vida, poroso. Uma prática que respira e encontra na contemplação e nos encontros uma possibilidade estar junto, e pensar junto. A prática do desenho, da escrita, dos bordados e especialmente das conversas é espontânea como algo que surge da vontade de se acomodar no mundo. De lidar com as questões que me atravessam, mas mais do que isso, de expressar algo que explore as possibilidades de criar junto com seres mais que humanos e humanos. A construção de cosmologias afetivas e enredadas às experiencias de um corpo plural, que se funde com árvores, plantas, rios, montanhas, céus e animais para construir um não corpo. Mas uma metamorfose de corpos e experiências. Nos encontros com as plantas, eu aprendo outros tempos, semear e fazer florestas, esperar e perceber que um corpo se desdobra, se enrola, se entremeia com outros, nasce e morre, coexiste com seres visíveis e invisíveis. Alcança o sol, e faz sombra para que outros possam nascer. Um corpo que segue em raízes para as profundezas da terra e só então surge, irrompendo da terra com destreza e energia. Me faz pensar que nossas raízes são aquilo que nos permitem crescer. Ganhar corpo e tamanho no mundo. Um corpo sem raízes não para em pé. É preciso regar a terra, afofar o solo, deixar as raízes crescerem. Voltar às raízes é chegar em ancestralidades mais que humanas, é perceber como a terra, o solo, os animais, as águas são essenciais para o crescimento das nossas raízes e florescimento dos corpos. É perceber que o humano não alcança esses outros tempos de existência de vidas que antecedem a vida humana e vai precedê-la quando ela não mais existir.

O caule vai crescendo e se ajustando ao ambiente, às espécies ao seu redor, ao céu, às chuvas, para então dar espaço às folhas, e outras folhas, e flores, e florescências que se juntam formando as florestas. Corpos entremeados. Confusos, caóticos, gentis, fortes e serenos. Crescem e tornam-se árvores, frondosas, ricas em água, agarram a terra e os micélios com suas raízes, e tomam o céu em paisagens que ocupam todo o nosso olhar até o horizonte. O corpo precisa se mover para perceber uma árvore, precisa silenciar, precisar abrir espaço para abraçá-la e mais que isso precisa de uma alma grande para acolhê-la.

Olhar o mundo a partir do ponto de vista não humano é um aprendizado que venho tecendo em companhia de filósofos, indígenas, quilombolas, plantas, sementes, rios, montanhas, dentro e fora do ateliê. Me encontro com outros tempos, e corpos para assim renascer em linhas, tecituras afetivas e tempos de contemplar que me permitem acessar os outros corpos que estão em mim. E olhar para a produção artística como plural, não monocultura, como uma possibilidade de criar muitas e diversas relações que transitem pelas mais diversas linguagens de forma a permitir uma leitura o mais aberta possível.

Olhar as formas como os seres se relacionam no pluriverso (1), tem me ajudado a perceber as limitações das formas como pensamos outros tipos de relação, e nesse campo penso junto com Geni Nuñez (3) , psicóloga indígena, que nos permite pensar de que forma as monoculturas nos atravessam desde os tempos coloniais, não somente no campo de pensar os espaços físicos e a agricultura, mas de olhar para as formas de estar no mundo, de se relacionar, e outras formas de pensar também baseadas na ideia de monocultura.

“Quando comento de ideologia colonial, estou falando do que tenho chamado de sistema de monoculturas, organizado em alguns eixos como a monocultura da fé (no monoteísmo cristão), a monocultura dos afetos (na monogamia), a monocultura da sexualidade (no monossexismo) e a monocultura da terra, cuja imposição do Um antagoniza com o princípio da floresta, necessariamente múltiplo” diz Geni Nuñez.

Resgatar formas não violentas de estar no mundo é estar aberto para se relacionar com todos os seres viventes da terra, sem exceção, acolher as várias formas de amor, os vários deuses, as muitas existências, olhar de forma a somar e não subtrair as formas de estar no mundo. Coexistência como forma de viver.

imagem feita no celular a partir de desenhos criados na Ilha de marajó e a imagem da praia da barra, também no marajó, durante o período da residência artística São Jerônimo, Belém, PA.

A política de aniquilação de seres humanos e mais que humanos é toda baseada em uma forma não plural de ver o mundo, e sim una. Onde uma coisa só pode existir em detrimento de outra. O pluriverso (1) é plural, o nome já diz, é aberto, é onde tudo cabe, todas as possibilidades de vidas e formas de se relacionar. Lendo a revista Piseagrama, edição vegetalidades (2) me deparei com uma matéria chamada Anti-domesticação de Manuela Carneiro da Cunha. Ela começa dizendo que os indígenas entendem a floresta como sendo cultivada por eles e outros seres viventes da floresta, não exatamente humanos, mas animais, vegetais, espíritos e guardiões. Fiquei pensando que ao considerarem todos os seres cultivadores de florestas, a ação de fazer floresta está vinculada a própria existência de todo ser.

Nós humanos que moramos na cidade olhamos a construção da cidade como algo realizado por poucos, outros, construtores e governantes. Não nos vemos como pessoas que constroem a cidade, mas que usufruem do que é feito por outros, e com esse pensamento utilitário vamos nos tornando consumidores das ruinas de todas as existências da cidade, inclusive de nós mesmos. Morar na cidade é também ter a convivência com seres mais que humanos, com o céu, as águas, as plantas, ainda que tenhamos dizimado os rios e estejamos acabando com as árvores da cidade, temos a escolha de nos relacionarmos com elas nas ruas, praças, casas, bosques e parques que ainda restam. E talvez sentir os rios que correm sob os asfaltos e que nas grandes chuvas sobem pelos bueiros nos lembrando da sua existência, gosto de pensar que é a fúria dos rios que se mantém vivos em um lugar que não podemos ver.

jardim das vitórias régias, região do rio arapiuns mescladas com desenhos feitos em soure, no marajó, pará

Acompanhando as mudanças da cidade, vejo as árvores desaparecendo, assim como as casas antigas se transformando em prédios e farmácias, o que me parece muito sintomático como recorte e reflexo da vida adoecida que temos na cidade. Fico aqui pensando que se as árvores são capazes de absorver 29 mil litros de água de chuva em um ano, filtrar a poluição do ar, produzir oxigênio, prevenir enchentes e deslizamentos, qual o sentido de arrancá-las para que mais carros, que diminuem o oxigênio, aumentam a poluição e precisam de asfaltos, feitos de materiais que não absorvem água das chuvas o suficiente, possam transitar. Olhamos a cidade como algo que está a nosso serviço, e não como um lugar onde habitamos, convivemos e construímos com todos os seres e formas de vida que estão ao nosso redor. A política de aniquilação de corpos e de lugares de respiro, de vida e memória vai se tornando banal. Olhando por esse ponto de vista, pensar a monocultura e a agrofloresta enquanto formas de estar no mundo pode nos dar uma luz para compreender algumas questões. As formas de cultivo de monoculturas de cereais são muito mais interessantes para os colonizadores porque fixam as pessoas em um lugar. Diferente do cultivo das roças de quilombolas e indígenas, como por exemplo, de cultivo de mandioca, que vai se movendo, e os cultivadores não se fixam, são mais difíceis de controlar porque também não tem suas casas e assentamentos fixados em um lugar. Isso me faz pensar que quanto mais nós nos fixamos em uma forma única de nos relacionar, viver, produzir em lógicas capitalistas e de consumo, mais aprisionados estamos a esse sistema de aniquilação de corpos, especialmente corpes pretos, LGBTQIAPN+, pobres, indígenas, quilombolas e de comunidades ribeirinhas, que estão em constante deslocamento pelos motivos mais diversos que incluem a dificuldade de se sentirem pertencentes a um lugar, a falta de condições de vida, trabalho e segurança, quando não são retirados de seus lugares para dar lugar a empresas que usam a natureza como recurso e a especulação imobiliária. É preciso proteger esses corpos, essas formas de vida e de viver que fazem o mundo mais plural e rico em cultura, afetos e saberes que são imprescindíveis para compreender como estar no mundo.

flona, floresta nacional do Tapajós, alter do chão, pa.

Olhar para o mundo a partir do ponto de vista das plantas, como nos convida a fazer Emanuele Coccia (4) dizendo para perguntarmos às plantas o que é o mundo pois elas que fazem o mundo, que é em grande parte proveniente da vida vegetal, é uma das possibilidades de olhar pra uma forma não capitalista e mais afetiva de estar no mundo. O mundo é o produto da colonização do planeta pelas plantas, desde tempos imemoriais. O que comemos, o mobiliário, as roupas, os animais, o combustível, só existimos porque as plantas nos oferecem um mundo habitável. Esta talvez seja uma saída para pensarmos a pluralidade da vida e de formas de nos relacionarmos a partir de ouvirmos as plantas, os animais, os seres mais que humanos, as águas, montanhas, ventos para que possamos nos reconhecer a partir de formas desconhecidas de se relacionar mas que são capazes de existirem e resistirem às ações humanas e formas de vidas em constante aprisionamento de reflexões, aproximações com o sensível e especialmente em contato com as artes e outras formas de criar mundos.

escrevendo com:

1. pluriverso é o nome que eu uso para natureza a partir de uma conversa que tive com um indígena, Luã Apikã, nas aulas de Tupi Guarani.

2. piseagrama, vegetalidades – edição especial, setembro de 2023.

3. Geni Núñez – monocultura do pensamento e a importância do reflorestamento, climacom, diante dos negacionismos, campinas, ano 2021.

4. Emanuele Coccia - A vida das plantas - cultura e barbárie, 2018.

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