o que mais podem os fungos
Não posso deixar de citar a pesquisadora Fabiola Fonseca, uma amiga querida, em quem eu me inspiro e com quem eu aprendi a fazer melhores perguntas, escutar com outros ouvidos e talvez enxergar para além dos olhos
Já não me recordo se são sempre os fungos que me atravessam ou se sou eu que me desloco ao seu encontro. Desde a primeira vez que fui a Belém meu corpo não é mais o mesmo. As águas que contornam a cidade desaguam em mim. Não sei se a primeira vez eu já carregava o rio em mim. Vinha de Alter do Chão, de dias seguidos no rio Tapajós e rio Arapiuns. Daquela sensação de riomar que vai chegando devagar e quando se menos espera toma o corpo todo. Toma o corpo em uma dimensão de fluxos. É como se o tempo do corpo se tornasse o tempo rio. Tempo em que as margens se alargam e os gestos se multiplicam, sem bordas. A respiração se funde à respiração da floresta, vai se tornando mais longa, e expande o corpo como quem empurra a pele pra longe e se abre sem contorno, porque de repente o contorno da floresta torna-se o corpo. E surge também um corpo floresta. Múltiplo em sentidos, percepções de cheios e vazios, de tempos outros, de gestos. O corpo agora move como a floresta. Em uma dança. Crescem as raízes das solas dos pés, e os galhos das pontas dos dedos das mãos. Os cabelos vão criando uma copa que se projeta para o céu em movimentos de ser árvore.
Fungos surgem do corpo árvore. Pequenos seres quase invisíveis vão surgindo e de repente tomam todo o tronco em tons de alaranjado. São tão pequenos que por vezes somem no olhar até que o tempo acostume a visão e todos surjam de uma só vez.
A Flona - floresta nacional do Tapajós, em 2023, me presenteou com uma coleção de fungos de vários tipos e tamanhos, junto às árvores, em madeiras, troncos caídos no chão ou mesmo surgindo do próprio chão. Naquela época já sabia dos micélios, mas talvez não tivesse me dado conta de quantos gestos e tempos estavam ali naqueles seres tão pequenos. Seres da maior importância para a existência de humanos e mais que humanos. Seres capazes de manter a floresta em pé, de se misturarem com outras matérias e transformá-las. Fungos são florescimentos de devires. São a possibilidade de pensar fabulações e novas formas de estar no mundo porque se tornam tantos outros quanto encontros ele é capaz de ter. Porque não escolhem com quem se unem só experienciam novas relações com qualquer outro que se aproxima. Ou mesmo na relação com eles mesmos. Surgem multicoloridos, em texturas diversas, são um campo sem fim de encontros.
Talvez possamos aprender com eles a nos aproximar de tantos outros quando possível para diminuir as distancias que nos separam de quase todos os outros seres humanos e mais que humanos.
ao longo do tempo
A varanda da minha casa é um espaço aberto de onde posso contemplar o céu de todos os lados, me sinto privilegiada por isso, mas para além do céu cotidiano vez ou outra outros seres surgem despretensiosos e quase invisíveis. Tem um banco de madeira que fica ao relento, muito a contra gosto de uns e outros aqui em casa, mas eu sempre tive segundas intenções e isso até agora era um segredo. Almejava profundamente a presença dos fungos aqui em casa, sem que fosse no mofo das comidas que surgiam na geladeira. Um dia depois de um período de muitas chuvas de janeiro eles começaram a surgir. Brotaram da madeira seres de um marrom profundo, um pouco brilhantes, gosmentos e em diferentes formatos. Alguns com bordas em formato de flor, outros parecendo umas pequenas tripinhas amarelas e alaranjadas. Fiquei ali fazendo imagens e tentando perceber o mais que podia. fiz uma série de imagens mas o que eu realmente queria era me demorar com eles. E assim eu fiz, subia na varanda varias vezes por dia, e logo, quando as chuvas pararam eles rapidamente desidrataram, foram mudando de cor e desapareceram em poucos dias. não me recordo ao certo. Esses nunca mais voltaram desde 2022
na varanda de casa, campinas, sp.
Em dezembro de 2024, mexendo no vaso da Romã eu desviei o olhar por um segundo e fui surpreendida por um pedacinho de madeira, descolado do mesmo banco e que tinha um pequeno conjunto de fungos minúsculos, quase imperceptíveis brotando do fragmento de madeira de no máximo 8 centímetros. Peguei o pequeno tronco, menor do que o meu dedo indicador e o levei para a mesa do ateliê. fiquei ali, olhando pra ele enquanto sentia que ele olhava para mim. Era tão minúsculo que não conseguia imaginar como ele via o mundo, e nem como eu o havia visto ali. talvez tenham sidos os seres encantados que me mostraram em um momento de contemplação delicada do vaso de romã. No início de janeiro ainda estava ali. Um pouquinho menor do que os encontrei da última vez. Segui com eles fotografando, mas mais do que isso sentindo. Tive medo de perde-lo de vista então fiquei ali, olhando, olhando, contemplando até que pudesse senti-lo no meu corpo sem nem precisar vê-lo. As vezes acho que sentir profundamente é sempre poder viver de novo, é como guardar uma memória. se ela estiver no corpo permanece no tempo.
ainda na varanda de casa.
Em 2019, em uma viagem a Finlândia, aliás preciso dizer aqui que a Finlândia é um dos lugares do meu coração. Ali tive uma sensação de estar tão conectada com a floresta como nunca havia estado antes. Pequenas florestas se confundem com a cidade, atravesso a rua e entro na floresta, passo por uma ponte, me desconecto totalmente de cidade e me deparo com toda uma vida, um outro modo de existir, outros tempos, e nessa experiencia, de um corpofloresta, entre ovelhas, pequenas casinhas de madeira de veraneio, e muitas espécies de árvores e plantas, além de uma infinidade de fungos. Fungos de muitas espécies, cores, formas, que se assemelhavam entre si, ou eram completamente diferentes, todos convivendo em troncos, no chão, nas pedras. quando mais eu caminhava mais eu via os fungos. Descobri que os finlandeses tem o hábito de fazer a caça aos cogumelos em época de verão, e de chuvas.
finlândia
As crianças aprendem sobre os fungos bem cedo para saberem os que podem ou não comer. Eu me lembrei do livro 'alice no país das maravilhas' porque foi a primeira vez que vi aquele cogumelo vermelhinho, com manchinhas brancas, que se você der uma busca na internet vai aparecer como sendo um dos mais venenosos do mundo... fico pensando sobre essas classificações como uma espécie de racismo, afinal o parâmetro é sempre os humanos, será que esse cogumelo é nocivo para outras espécies? será que a única função para os humanos é comer? não poderia ser aprender com eles a fazer micélios, se comunicar, proliferar, transformar, desobedecer as regras... não consigo mais imaginar qualquer fungo nocivo, mas sempre os imagino fazendo florestas com as árvores, se comunicando de forma invisível e sendo cada vez mais necessários para a manutenção de todas as outras vidas no planeta, especialmente a humana.
No mesmo período fomos a Estocolmo, Suécia, e em uma feira de rua, além de uma variedade enorme se flores gigantes tinha uma banca de fungos de cores a tamanhos diferentes. Ali pude também ter a dimensão do mercado de cogumelos e fungos. impressionante pensar como se transforma uma espécie em mercadoria com tanta facilidade. Os cogumelos matsutakes são muito utilizados no Japão para longevidade e até cura de doenças como câncer, e custam uma fortuna, um cogumelo pode custar 20 euros e um quilo até 2000 euros. eu sempre me lembro dos indígenas falando sobre como tudo na cidade vira mercadoria. eu fico pensando em como nós que vivemos nas cidades desaprendemos a nos conectar com as plantas, seres mais que humanos e passamos a pensar a forma de comer, de se alimentar a partir dos ciclos de organização do mercado, das imposições de tempos em que se consomem as coisas que as grandes produtoras se interessam em nos oferecer, nos grandes mercados. existem cogumelos e fungos que custam mais de 20.000 e 30.000 reais, pode imaginar? para quem servem esses luxos? fora as trufas brancas que se leiloadas podem custar números de muitos zeros. a minha relação com os fungos e cogumelos é tão antiga, e se tantas ordens, menos a monetária, que embora me entristeça pensar nessas questões, acho importante pontuar como um lugar de reflexão de como somos impelidos a construir pensamentos de privilégio e nos gabarmos de termos condições de tal consumo enquanto a maior parte das pessoas do mundo passa fome. costumo olhar para um lugar no qual as coisas possam ficar em um meio termo, nem muito lá nem muito cá. esse é o desafio dos dias de hoje, encontrar caminhos que possam nos fazer refletir e ao mesmo tempo nos posicionarmos de forma ativista e delicada.
feira de rua de estocolmo, suécia.
Em outubro de 2023 conheci a pesquisa de fungos da Gramáticas da natureza, da Carolina Coronato e do Vitor Barão, no sesc 24 de maio, em SP. Pude ver os cultivo que eles estavam fazendo, as aproximações que permeavam o campo da arte, da educação e da biologia, criando intersecções nesses campos, que muito me interessam. Além das pesquisas gastronômicas de fermentação feitas pelo Vitor. fico pensando que talvez esse seja um bom lugar para pensar com os fungos, e seres mais que humanos, lugar de convivência, de respeito e aprendizagem em um limiar delicado, sem excessos. Pude observar isso também em uma mesa apresentada por eles no Sesc pinheiros em 2024.
“decompor é fazer um - para desfazer os nós da matéria e movimentar energia, os fungos entram em ressonância com a vibração do que alcançam - vibram seus corpos também, se diluem na matéria, participam da sua existência para decifrar suas partes. regem o fogo para transformar e fazer mundo. antes de sermos o que comemos, os fungos se tornam o que ainda vão comer. precisam estabelecer intimidades oceânicas na diferença, desmontam pelo encaixe, carinhosamente. desenham enzimas pela escuta atenta das formas. não quebram moléculas, mas desmontam cuidadosamente os mecanismos para preservar o que emerge das partes. desembaraçam novelos para tecer corpos híbridos e desembaraçar é, então, tecer também. decompor é compor. decompor é cantar - bem baixinho no ouvido - a língua da vida. é transformar pelo contato.” (texto retirado do Instagram referenciando a mostra ‘fungarium’ no Sesc pinheiros)
Em janeiro de 2024 no Ponto de Luz, Joanópolis tive encontros fortuitos . No canto da horta de ervas e na escada que subia da cachoeira. esses eram poucos e escondidos como se estivessem ali por engano, mas meus olhos atentos sempre os encontram.
No mesmo período, nas idas da casa da minha tia os vi no jardim. na frente da casa surgiram no chão e no quintal no tronco da jabuticabeira. me demorei com eles, olhando sentindo e posso trazê-los de volta a qualquer momento em que fechar os olhos. essa foi a primeira vez que vi os fungos na casa da minha tia, me fez pensar que talvez, em outros tempos, minhas visitas tenham sido mais desatentas ao jardim, mas não menos afetivas.
no jardim da casa da minha tia em são paulo.
Em março de 2024 tive um encontro incrível com eles na Serrinha. Foi um final de semana e caminhamos muito pela fazenda, em vários horários do dia. Me dei conta que próximo as pedras, haviam uns muito muito pequenos, eram bolinhas em tons de bege escuro e amarelo, presos por uma pequena haste muito fininha, da largura de uma agulha de costura. Quando me lembro deles hoje me pareciam secretos e silenciosos, como nunca havia percebido outros antes. Em um momento de poda e manejo na agrofloresta, percebi a sua presença nos troncos das árvores, em formatos de cone parecendo delicadas linhas repetidas que se assemelhavam a pequenas conchas desenhadas e esculpidas por seres encantados. Eram muitos, esses me pareciam os que escutam os segredos, de ouvidos abertos. Haviam outros parecendo que haviam acabado de sair do fundo do mar como as algas, brancos transparentes. Me fez imaginar que eram habitados por seres encantados. Uma coleção de fungos muito especiais em dias de sol que seguiam os dias chuvosos.
No dia seguinte, em uma caminhada bem cedinho, surgem nos campos alguns em forma de flor que se assemelhavam a mini esculturas de gelo, transparentes e desenhados em linhas quase invisíveis, esses pareciam trazer alegria. E outros ainda peludinhos como pompons em tons de bege, aqueles que dá vontade de pegar e sentir as texturas. registrei muitos deles esse final de semana e me dei conta que algo em mim se alegra com esses encontros, eles me parecem mágicos, carregadores de segredos, encantados e sensíveis. me lembram das delicadezas
fungos encontrados na serrinha, bragança paulista, interior de são paulo.
Voltei para Belém em outubro de 2024. Miguel Chicaoka, Eduardo Kalif e eu, fomos a Colares. Caminhávamos na mata, uma reserva particular de reflorestamento do fotógrafo Eduardo Kalif, e nos caminhos eles iam surgindo despretensiosos e alguns muito diferentes do que eu já havia visto. De repente, um lugar totalmente inesperado, pensando bem inesperada era mais a minha presença ali, do que a dos fungos. Havia um conjunto de fungos gigantes sobre uma pedra. A coisa mais linda desse mundo. Tinham o tamanho da envergadura humana e uma textura muito especial. Ficamos ali, contemplando e sentindo a existência daqueles seres. nesse caso especifico me dei conta que as imagens não são suficientes para contar a experiencia e nem tampouco apresentá-los decentemente a outras pessoas. ainda assim os fotografei e apresento aqui algumas imagens. em algum momento dos meus processos criativos me dou conta de que fotografo para lembrar, para sentir de novo e de novo a presença desses seres em mim, para desenhar com eles e talvez ouvi-los mesmo através das imagens.
colares, pará, fungos encontrados na reserva florestal na casa do Eduardo kalif. na imagem acima a esquerda miguel chicaoka.
Em uma das primeiras caminhadas do ano, 2025, no centro de Campinas, depois de uma chuva forte que derrubou várias árvores no centro de Campinas, fui até o bosque dos Jequitibás e como o bosque estava fechado devido a queda de árvores, resolvi andar ao redor. Costumo caminha em um estado de espera, de devir, de encontros, com olhos atentos, e pisando leve no chão. Ao redor do bosque eu acompanhava as árvores e troncos próximos da cerca, e quase no final do percurso eles surgiram. como não sou uma estudiosa de fungos, apenas uma entusiasta, nem sempre consigo os identificar, algumas vezes acho que é outras não, mas vou sentindo e esperando que eles me contem se são ou não fungos.
fungos encontrados no bosque dos jequitibás em campinas, são paulo
No troncos das árvores, no chão. fui registrando e tentando os ouvir. nem sempre consigo identificar os fungos, algumas vezes acho que é e não é e outras o inverso. Isso me faz pensar sobre a natureza desses seres. eles são tão múltiplos, diversos, que não conseguimos classificá-los com facilidade, me parece que sempre escapa. Isso é uma das coisas que mais me interessa pensar, como se quase todos os seres do mundo pudessem ser pensados a partir de vários lugares, assim nos possibilitam ampliar as histórias, fabular em cores diversas e especialmente acordar nosso corpo para outras formas de estar no mundo.
Em janeiro de 2025 na Flona, Floresta Nacional dos Tapajós, no Pará, de novo me encontro com muitos deles, alguns me pareceram estar nos mesmos lugares, mas não me pareceram ser o mesmo, e desta vez a variedade de tipos foi enorme. o que me fez pensar que o reino fungi é de uma riqueza encantada. As imagens que apresento abaixo são um recorte de alguns cogumelos mais diferentes que encontrei por lá.
fungos encontrados na flona, floresta nacional dos tapajós, janeiro de 2025.
Termino esse texto do mesmo lugar onde o comecei e isso me faz olhar para o tempo, prolongado ou não como uma espécie de movimento circular, no qual de tempos em tempos surgem encontros e nos permitem fazer esse percurso a partir de rios, nuvens, árvores e qualquer outro ser mais que humano que nos atravesse de tempos em tempos. E sendo atravessado por eles também os atravessamos e vamos assim criando tramas, desejos, anseios de vidas mais múltiplas, de relações mais afetivas e de encontros mais fortuitos.
Escrevo com os fungos, as florestas, os rios, escrevo com os livros e com as pessoas que me inspiram.