os bordados são um lugar político

Os bordados são lugares mágicos. De encontros, gestos fortuitos. Sementes de devires floresta. Fazer floresta é brotar em gestos sensíveis, escritas, desenhos, espaços de convívio e experimentação.
Bordar pode ser se disponibilizar a um encontro com linhas, lãs, agulhas e tecidos.
Bordar pode ser tecer um corpo no outro. Uma dança.
Bordar pode ser tecer palavras enquanto as mãos tecem as linhas...
Bordar pode ser existir em relações...

O projeto consiste em trazer um tecido, pano de chão tipo saco, com tramas um pouco abertas, descosturado nas laterais, agulhas sem ponta para não machucar crianças, que são bem-vindas, um novelo de lã de várias cores, separado por cor e uma tesoura.
As regras do bordado são: não precisa saber bordar; não pode dar palpite no bordado do outro; não pode ensinar, não é um lugar de ensino/ aprendizagem. É um lugar de convivência com linhas, lãs, agulhas, o tecido e com as pessoas que chegarem pra bordar.

Esse é um projeto coletivo. As pessoas que quiserem ampliar essa proposição e abrir bordados por aí vai ser lindo. Não precisa nem me dar créditos, mas se as pessoas fizerem eu gostaria de pedir que as regras do bordado sejam mantidas porque elas têm uma razão de ser.

Comecei a propor esses bordados coletivos em 2024, em Igatu, chapada diamantina, bahia. Em busca de um espaço de encontro me veio essa ideia. Um tecido, lãs, agulhas e pessoas.
Eu comecei a bordar em 2023 muito interessada em prolongar o tempo do desenho. Não exatamente em busca do bordado em si, mas dos gestos que ele poderia imprimir no meu corpo e na relação com o tempo.
Em Igatu, com duas mesas e cadeiras na praça, convidamos as pessoas para essa experiência. Vieram 30 pessoas bordar. Foi uma coisa linda. Crianças, adolescentes adultos, idosos. Todas as idades. Tecemos juntos o primeiro bordado coletivo.
Entre conversas e linhas, nos alternando nos espaços do tecido, ficando com os tempos estendidos na praça do vilarejo. Os bordados ficaram lá em Igatu o tempo que durou a exposição 'agora eu ouço os sabiás' na Galeria Arte e memória. Esses tecidos são os únicos que estão comigo.


bordado na praça, vila de igatu, chapada diamantina, ba, 2024.

O segundo bordado eu abri no ateliê. Um tecido de cor cereja e que fica disponível para quem chega... esse bordado não teve um evento de abertura assim como não teve o bordado azul que foi aberto da livraria Candeeiro, em agosto de 2024. Lá eu cheguei um dia, sentei para bordar e fui convidando as pessoas que chegavam. Na Candeeiro aconteceram coisas bem bonitas, muitas histórias e pessoas que eu acabei conhecendo por causa do bordado e que seguiram no meu caminho entre a literatura, o cinema e as artes visuais. Também houve um movimento lindo de trazer as mães e avós para bordar e tomar chá. Eu peguei o tecido de lá para fotografar e deixei outro lá. Mas os tecidos sempre pertencem aos lugares que os acolhem.
Muitas conversas se dão ao redor dos bordados, também alegria e compartilhamentos, outros tempos.

Ainda em 2024 abri um bordado em Belém, na Kamara kó galeria. Um tecido cru, linhas e lãs e agulhas e vieram 25 pessoas bordar em um sábado de manhã. E em um segundo evento, em janeiro desse ano, 50 pessoas vieram em uma tarde e acabei abrindo um segundo tecido para acomodar as pessoas.
Os bordados vão ocorrendo entre silêncios e compartilhamentos, conhecidos e desconhecidos, em encontros fortuitos.
Na mesma época que estava em Belém, fizemos uma imersão na ilha de marajó, em Joanes, e lá eu tinha um bordado que eu estava fazendo inicialmente sem a participação das pessoas, mas sentei na mesa para bordar e logo estávamos quase todas as mulheres em volta do bordado. Foi lindo. E me dei conta ali que os bordados são sempre lugares de compartilhar, de fazer junto e eles vão abrindo espaços, convidando as pessoas para chegarem.
Na segunda vez em Belém eu estava de passagem e peguei um barco de Belém a Santarém. Foi uma viagem de dois dias e meio, que fiz com um amigo, e no barco, durante o trajeto, navegando com o rio amazonas eu comecei a bordar o lençol que eu dormia. Esse é um tecido bem grande e com uma estampa florida, é o único diferente dos outros e certamente terá um tempo mais estendido de ficar pronto.

bordado coletivo na kamara kó galeria, belém, pa

Chegando em Alter do Chão convidei um grupo de pessoas para bordar no hotel e no barco esse mesmo tecido. Foi uma experiência bem linda, bordamos no barco, sentadas em redes e no chão, aquele tecido enorme florido. Bem ali observo um outro movimento fluido na relação com o cotidiano que é bem comum nos meus projetos. Acordar os tempos estendidos e criar espaços de convívio é o que me interessa.

Em março de 2025 fui a Piracicaba no ateliê casa 3 abrir um outro bordado. Levei um tecido cru e vieram em torno de 12 pessoas bordar em uma tarde de sexta-feira, depois do Carnaval.
Ali estabeleceu-se uma outra relação com o bordado. Talvez porque a maioria das pessoas já se conheciam, virou uma brincadeira leve, divertida e que inaugura um gesto um pouco mais coletivo no sentido da construção da imagem e do entrelaçamento dos bordados. As linhas se sobrepunham, propus ali um encontro de gestos e bordados que criou um fluxo lúdico.

Bordar pode ser um ato político, anticapitalista no qual todes são bem vindes, é inclusivo, não precisam trazer nada, também não se leva nada além da experiência e da convivência com as pessoas. O tecido fica para o lugar que acolhe o bordado. E as pessoas do lugar podem decidir quando o bordado está pronto.
Eu peço apenas uma imagem do bordado finalizado em uma boa resolução para documentar a experiência e guardar como um registro. Fotografo o encontro e as mãos das pessoas bordando. Essa é a forma que eu encontrei de registrar afetivamente e de forma horizontal, mãos que fazem junto.

Pela primeira vez o bordado será aberto por uma outra pessoa em Belém. Essa também vai ser uma nova experiência e reverberações vão surgindo dos caminhos que os bordados vão tomando. Esse projeto é aberto e todas as pessoas que quiserem abrir novos bordados são bem vindas.

bordado coletivo no ateliê casa 3, piracicaba, sp

Para abrir um bordado é preciso disposição, abertura e...


material:

01 pano de chão de trama aberta (para ser fácil de bordar para qualquer pessoa)
01 novelo de lãs multicolorido (eu compro um chamado batik da circolo)
5 a 8 agulhas
01 tesourinha pequena

As regras:

Não precisa saber bordar
Não pode dar palpite no bordado do outro
Não é um lugar de ensinar e aprender mas de experimentar o tecido, as linhas e a agulha na relação com outras pessoas

Dicas:
No caso de muitas pessoas para bordar sugerir um rodízio ou propor exercícios de trocas de lugar de tempos em tempos.

Os bordados têm me trazido um corpofloresta que carrega diversidade, fazer junto, compartilhamentos e estados de ser em outros tempos. Uma alegria enorme encontrar nesses processos uma forma de fazer floresta por onde os bordados vão se abrindo em formas fluidas e selvagens de existir.
Imagino também que há uma conexão invisível entre os lugares onde os bordados são abertos. Assim como os micélios crescem e se unem às árvores debaixo do solo.
Bordar é também ser atravessado por tempos, por outras linhas e outros estados de ser. Somos também bordados de memórias e sentidos enquanto bordamos.


A linha faz nascer no tecido um vestígio
Um estado de gesto
Uma respiração
As tramas do tecido acordam ao passar das linhas
Com o tempo faz se um desenho, faz se uma mancha, faz se um relevo

Separar as linhas
Escolher a agulha
Passar a linha pelo buraco da agulha
Escolher o tecido
Escolher a cor de lã
E finalmente bordar

Bordar é um ritual
É um convite a convocar outros tempos
Tempos de desenho prolongados pelo gesto
Bordar é segurar as mãos de quem veio antes de nós
Das avós, bisavós, tataravós
Um tempo estendido de encontros que gestam uma outra forma de estar no mundo
O tempo das mesas postas para o chá da tarde
Ou mesmo o tempo em que as escritas eram longas
As histórias eram contadas em uma espécie de relevo do tempo
Em altos e baixos
Em longas frases que situavam o tempo, as subjetividades, os sentimentos
Me parece que o achatamento dos tempos e os gestos encurtados pela tecnologia nos rouba um estado de ser
Nos rouba uma respiração mais profunda
Uma leitura mais longa
Encontros mais demorados

bordado coletivo em uberlândia, no grupo uivo, ufu.

O bordado é um convite para se reconhecer nesses tempos, gestos e subjetividades

O bordado é um ato político
É estender o tempo
É o coletivo que se sobrepõe ao individual
É o tempo que se sobrepõe a ação
É reconhecer as memórias e histórias que surgem quando nos juntamos para apenas estar na relação com linhas, agulhas, tecidos e pessoas
E compreender que resgatar as memórias é um ato político
Bordar um tecido que vai ficar
Sem levar nada
É oferecer o seu tempo
O seu bem mais precioso para o coletivo para uma construção coletiva
É anticapitalista, é decolonial
É um espaço de gestar devires coletivos
É fazer junto

Nessas proposições de bordados  coletivos, a convivência se sobrepõe ao resultado, as regras são libertadoras, transgressoras, e nos libertam de todas as regras ditadas por uma educação castradora. Convidam a outras formas de estar no mundo sem ser competindo, sem exigir habilidade alguma, a não ser a disposição e vulnerabilidade, sem julgamentos, apenas sendo você, exatamente do jeito que você é e com aquilo que você pode oferecer. Essa é uma forma linda de se encontrar, para ser só quem a gente é, sem amarras, sem pré-requisitos, sem precisar atingir resultado nenhum.

Proponho uma experiencia que não envolvem uma única forma de existir, mas na qual todes são bem-vindes e incluídos. Participar de um bordado coletivo é também um ato político, afetivo e de entrega. Entregar-se ao mundo em uma expressão genuína e despretensiosa que se constrói em gestos coletivos, nos quais um não se sobrepõem ao outro, e no coletivo do tecido todes existem juntes.
O coletivo como ato de resistência, de força e possibilidades de encontros sensíveis.
Corpos livres são mais fortes, resistem mais.
O bordado coletivo se move e é movido pelas pessoas que o encontram. Exigem novas formas de se relacionar e tempos suspensos.

Cada vez mais eu percebo esses espaços como um lugar de fortalecimento de corpos, de resistir ao que nos impede de ser quem somos, de experimentar algo novo, desconhecido, de reconhecer valor nas pequenas coisas, de se colocar para simplesmente estar junto. De compartilhar os afetos, as delicadezas, as histórias e preservar as memórias, ou resgatá-las porque sempre acontece de surgirem histórias de família.

Em Março de 2024 abri um bordado em Uberlândia, no grupo UIVO, da ufu. Fizemos um encontro no centro de convivência da faculdade. Muitas pessoas vieram bordar, outras vieram conversar, e esse bordado vai ser itinerante sendo parte das proposições de fazer junto do grupo UIVO. Em abril eu levei os materiais de bordado para as proposições de mesas de trabalho das águas, do grupo Multitão, no Labjor, Unicamp. Nesse momento a experiência foi uma pouco diferente porque a proposição de bordar foi mais uma das atividades de mesa de trabalho, e nela as pessoas trouxeram imagens, objetos que compunham a mesa para compor o bordado. Esse bordado segue nas mesas de trabalho do Multitão, sendo ativado como mais uma proposição das mesas, como aconteceu no evento da casa do Lago, no qual as proposições incluíam projeções, vídeos e biodança além de outros materiais que compunham a mesa e uma instalação de chão.

 
Desde que eu comecei esses bordados tem sido um me refazer nos encontros, nos afetos, me reconhecer e desconhecer nas histórias, nos tempos e com isso me encontrar com muitos eus. Acho que é sobre isso, me conectar com todas as formas de mim. Através de outros, muitos outros.
Um tempo de suspensão poucas pessoas pegam o celular, senão para registrar pequenos momentos, presença de corpo e de alma, em um gesto de entrega, lindo!!!

Eu sinto que cada vez mais essas práticas de estar junto são cheias de encantarias, uma energia que vai se somando de cada um que chega e sai e as pessoas vão se deixando ali e carregando muitos outros.

Isso me faz pensar que abrir os bordados é como me deleitar no tempo das Madeleine de Proust, ou no tempo dos aromas de Byung-Chul Han.
O tempo do bordado é outro. Outro gesto, outra forma de expressar, outro corpo. Porque a gente borda com o corpo não só com a mão. O movimento de bordar está no corpo, na respiração e em um gesto que se demora.
Compartilhar um mesmo tecido para compor um mundo coletivo, em que as fronteiras se esgarçam e que os tempos se sobrepõem.

Eu acredito que precisamos criar corpos mais sensíveis, mais livres. Corpos livres são mais difíceis se controlar, são mais porosos e mais disponíveis para resistir ao plano de controle colonizador dos governos que acontece desde sempre, controle de massas, sem que a gente perceba. O capitalismo e o neoliberalismo vêm tornando isso cada vez mais intenso firmado por uma sociedade de consumo e excessos de tudo. O consumo, consome cada vez mais rapidamente o planeta como recurso do chamado desenvolvimento, ideia completamente equivocada das nossas necessidades civilizatórias e de contenção das mudanças climáticas.

E o que o bordado tem a ver com isso?

O bordado coletivo é uma forma política de estar no mundo. São até 8 pessoas bordando ao mesmo tempo no mesmo tecido, o que envolve regras silenciosas e tácitas de convívio, faz com que as pessoas observem uns aos outros e não só a si próprias, não exige nenhuma habilidade, só a vontade de estar junto, não envolve competição, não tem certo ou errado, porque experimentar é acolher o que vier. Não custa nada, você vem borda e deixa o seu bordado ali no tecido para o espaço, ou a pessoa, que acolhe o projeto. Exige desprendimento, amor e colaboração.
A proposta é também com custo muito baixo, máximo 50 reais. É necessário 01 pano de chão tipo saco, desacostumado nas laterais na cor que quiser, ou algum tecido reciclado, de casa, que vai ser descartado, as pessoas podem trazer roupas para costurar e criar o tecido, (enfim criatividade aberta) só precisa ter trama não muito fechada para facilitar o bordado e acolher pessoas de todas as idades, especiais e sem habilidades. Um rolo de lã multicolorida (eu uso uma chamada Batik, que custa 24 reais), para cortar em pedaços de cada cor, uma tesoura e 8 agulhas de bordar. Basta convidar as pessoas, contar as regras e fazer.
Quanto mais gente fazendo isso melhor, vamos criar rizomas de bordados, pessoas fazendo isso em lugares diferentes e convivendo com os diferentes, ouvindo histórias, existindo em harmonia e descolonizando corpos. Micropolítica.
Um simples ato coletivo de bordar pode fabular outros mundos possíveis.
 

Ritual de bordados – outras experiencias do bordado

Tenho dado muita importância as pequenas coisas... aos sinais do cotidiano. Há algumas semanas postei um bordado no Instagram e uma amiga de São Paulo, me deixou uma mensagem quero bordar com você. Logo de imediato respondi venha. E fiquei pensando nessa proposta tão inusitada, primeiro porque bordar é uma prática que eu iniciei a bem pouco tempo, sem nenhuma técnica ou pretensão; e depois porque me lembrei que minha avó morava em Itápolis e ela sempre trazia peças bordadas de Ibitinga quando vinha em casa. Não me lembro de ver alguém bordando na família. Só de ouvir minha tia Darly dizer que não gostava de bordar, gostava de ler.
O tempo passou e a data de nos encontrarmos para bordar chegou. Resolvemos chamar mais uma amiga em comum e fazer uma tarde de bordar.
Arrumar a mesa para nos receber foi o primeiro ritual. Escolhemos alguns bordados que eu ando fazendo, um livro de artista, fotografias, fragmentos naturais em vidrinhos, uma maraca, uma varinha da conquista, de Marajó, e duas plantas, uma em um vaso e uma em um recipiente de vidro. Fomos colocando as coisas na mesa junto às linhas, lãs e tecidos. A mesa estava posta. Afetiva e cheia de energia, para com ela iniciarmos o bordado.
Lembrei da conversa do ciclo selvagem Krenak com o Eduardo Viveiros de Castro dizendo que a maracá é um acelerador de partículas, o qual traz os espíritos da floresta para conversar com os humanos, para que a gente possa descobrir os segredos dos espíritos. E a varinha da conquista, um objeto que eu trouxe do Marajó, que traz boas energias, sorte e proteção. É feita de uma madeira chamada Taquari, que quer dizer madeira com furo, e carrega os desenhos marajoaras feitos por uma família de Soure que já está na terceira geração fazendo essas varinhas.
Na sequência fomos a biblioteca e cada uma escolheu um livro para ler um pequeno fragmento e nos colocar em conexão com as palavras sensíveis. Só então começamos a bordar. Bordar é construir com linhas. É ocupar espaços de um tecido com um gesto, um sentimento, um tempo. Criamos um espaço de tempo suspenso. Um lugar de estado de conexão com as linhas, os gestos, as palavras, os silêncios, e o sensível em nós. Resolvemos bordar sem traçar, sem a intenção de fazer algo mas deixando fluir. O mais curioso foi que no final nós três tínhamos feito coisas completamente diferentes que havíamos pensado. Deixamos nos levar pelo tempo, pelo gesto, pelo momento e pela sensibilidade.
Fazer florestas é abrir espaço para o sensível, o amoroso, o que acolhe, o criativo e principalmente para as relações afetivas e sensíveis que precisam muito serem preservadas e fortalecidas.
Bordar é resistir. É se demorar. É criar encontros. É abrir espaço para serenar, se esvaziar e se preencher de energia.


segundo tecido do bordado coletivo deixado na livraria candeeiro, campinas, 2024

Sobre os gestos afetivos

Bordar é um gesto afetivo e erótico. É deslocar uma linha por um buraco feito por uma agulha, e criar um relevo em uma superfície já existente. É como criar uma paisagem, ou uma espécie de plantação não monocultura.
Eu nunca quis aprender a bordar, mas aprender com a linha, as lãs e o tecido.
Enquanto escrevo esse texto vou ouvindo os bem te vi conversando entre si de lugares distantes. Quem sabe de uma constelação de árvores.
Comprei as lãs em novelos multicoloridos, os desmanchei em cores separadas. Os tecidos são os mais diversos.
Comecei com os paninhos de algodão cru, depois com os tecidos encontrados no ateliê, depois as cortinas velhas que foram trocadas por outras novas. Esse tecido das cortinas está tão velho que se desfaz quando eu bordo, abre buracos, rompe as fibras e me faz bordar mais sobre a superfície criando relevos ainda maiores. Tive que aprender a lidar com ele, entender o gesto e a delicadeza de cada encontro da linha, da agulha e do tecido.

Em Luanda via aquelas mulheres lindas com os tecidos coloridos amarrados, colados no corpo. Um corpo maduro, de curvas acentuadas e postura ereta. Ora com as bacias na cabeça, as zungueiras, oferecendo os seus produtos de venda em um canto lamuriante e delicado que se ouvia ao passar do seu lado, ora segurando seus muitos filhos pelas mãos e outros amarrados pelos tecidos próximos ao corpo.
A loja de tecido é um carnaval de estampas muito especiais. São como prateleiras de cores que se sobrepõem e criam uma grande estampa multicolorida na qual você entra dentro. Escolhi tecidos que dialogam com meus desenhos já pensando em experimentar coisas híbridas. Eu só não sabia ainda que seriam com os papéis, com as aquarelas de pigmentos minerais além de outros tecidos, que faria isso muito em breve.

Em um ida a SP na semana passada havia um rapaz vendendo pano de chão no sinal. Há muito tempo os vejo vendendo esses panos, alguém me disse um dia que eram pessoas adictas que entraram para um programa de recuperação e que agora vendem esses panos. São brancos ou de um xadrez azul. Esses panos são mais maleáveis. Se movem com a linha e cobrem o corpo como uma manta que se acomoda na superfície quase sem deixar espaço entre o tecido e o corpo. Esses me interessa pensar em esculturas que ainda não sei como são, talvez adicionar fragmentos naturais, criar jardins misturados aos bordados.
No mercadinho em Cuiabá, um bairro de Nazaré onde costumamos ir quando estamos na represa, tinha panos de chão coloridos. Trouxe os para casa e fui descosturando o saco e guardando as linhas da costura.
Vou me dando conta que o bordado é um mundo de aprendizado, de tempos, de gestos que se assemelham a vida na floresta. É como fazer uma floresta. Os tecidos são como o solo, quando bem cuidados utilizados por culturas diversas são macios, fácil de mover e recebem qualquer semente. Quando são usados na monocultura ficam duro feito pedra.
O corpo que borda é o mesmo que planta. É o mesmo que desenha, que deseja que acolhe e que segue através dos encontros conhecendo a si mesmo.
Mudar os materiais é conhecer outras formas de se relacionar, é abrir espaço para o novo, para uma nova composição musical feita por outro tempo de gesto. Me interesso por bordar porque prolonga o tempo que me demoro com o desenho e me faz perceber que os encontros podem ser de muitas formas, mais afetivos, mais assertivos, ordenados, livres, serenos, barulhentos, sensíveis ou mesmo rígidos e tudo isso requer aprendizado, abertura, flexibilidade.

 

 

Previous
Previous

do paraná ao pará em sensibilidades

Next
Next

o que mais podem os fungos